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Clementina de Jesus, samba e ancestralidade
07 Fevereiro 2020 | Por Fernanda Fernandes
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Foto: Museu da Imagem e do Som

Tina, Quelé ou Rainha Ginga (Nzinga) – por sua importância e grandeza, em referência à soberana que foi símbolo da resistência ao colonialismo português em Angola – foram alguns dos apelidos de Clementina de Jesus, cantora que dá nome a um Ciep no bairro de Campo Grande (9ª CRE).

Sua voz e seu repertório marcaram a cena musical brasileira, exaltando elementos da cultura negra.

Neta de escravizados e filha de Paulo Batista dos Santos, pedreiro, mestre de capoeira e violeiro, e de Amélia de Jesus dos Santos, parteira, Clementina de Jesus da Silva nasceu na data estimada de 7 de fevereiro de 1901 (há divergências e sua certidão de nascimento nunca foi encontrada), em um bairro da periferia de Valença, no sul do estado do Rio de Janeiro.

Mudou-se para a cidade do Rio ainda criança. Primeiro, para Jacarepaguá e, depois, para Oswaldo Cruz. Com a mãe aprendeu, desde pequena, pontos de jongo, cantos de trabalho, ladainhas, partidos-altos, lundus etc. Também na infância, ganhou o apelido de Quelé (corruptela de seu nome).

No bairro do subúrbio carioca, Clementina desfilou em blocos de carnaval – como o Moreninha das Campinas – e cantou no coro da igreja que a família frequentava. Com o tempo, já marcava presença em rodas de samba da região, agremiações carnavalescas e, mais tarde, na escola de samba Portela.

Clementina, em 1966 (Foto: Fundo Correio da Manhã/ Arquivo Nacional)

Em 1940, depois de se casar com Albino Corrêa Bastos da Silva, conhecido como Albino Pé Grande, foi morar no morro da Mangueira. Na época, ela já tinha uma filha, Laís, cujo pai não assumiu o relacionamento. Ficou ao lado de Albino até 1977, quando ele faleceu. Com ele, teve uma filha, Olga, nascida em 1943.

Carreira musical: início tardio

Clementina de Jesus trabalhou por mais de vinte anos como empregada doméstica, até conhecer Hermínio Bello de Carvalho e ver sua vida mudar após os 60 anos de idade. Ao ouvi-la cantando no bairro da Glória, no Rio, e, depois, no Zicartola – restaurante comandado por Cartola e Dona Zica –, o produtor musical se encantou e articulou o que seria a estreia da cantora nos palcos. Em 1964, em show do projeto O Menestrel, Clementina se apresentou com o violinista Turíbio Santos no Teatro Jovem, em Botafogo.

No ano seguinte, subiu no mesmo palco, ao lado de Aracy Cortes, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Nelson Sargento, no show Rosa de Ouro, dirigido por Hermínio e Kleber Santos. Clementina interpretava, entre outras canções, Benguelê, de Pixinguinha e Gastão Vianna. No repertório também estava a composição que Elton Medeiros fez em sua homenagem: Clementina, cadê você?. Do show, que seguiu em turnê pela Bahia e por São Paulo, foram editados dois LPs, em 1965 e em 1967.

Em 1966, Clementina de Jesus representou o Brasil no Festival de Cannes, na França, e no Festival de Arte Negra, no Senegal, onde se apresentou ao lado de Paulinho da Viola e Elton Medeiros, em um estádio de futebol. “Quando a Clementina entrou e começou a cantar, ela foi ovacionada. Foi uma coisa, assim... de você se identificar imediatamente. As pessoas começaram a aplaudir, a gritar. Essa cena eu não esqueço mais”, relembra Paulinho da Viola, no documentário Clementina de Jesus – Rainha Quelé, de Werinton Kermes.

Clementina de Jesus na Estação Primeira de Mangueira, no carnaval de 1970 (Foto: Geraldio Viola/ Flickr)

No mesmo ano, participou de concertos na Aldeia de Arcozelo (complexo cultural situado no município fluminense de Paty do Alferes) e na Sala Cecília Meireles, e lançou o LP Clementina de Jesus – com canções consideradas “tradicionais”, como o jongo Cangoma me chamou.

“Este disco não esconde a pretensão de abrir um caminho de pesquisa. O jongo, dança dramática afim ao samba rural, aparece aqui fixado em sua trama polirrítmica. Vamos ter oportunidade de escutar outras modalidades de samba: a ‘batucada’, de interesse mais restrito, e um ‘partido-alto’. Uma antiga tradição das rodas de samba poderá, aqui, ser observada: usava-se, em grande escala, fazer-se samba sem segunda parte, deixando-a ‘ad libitum’ daqueles que, na roda, se aventurassem a acrescentar um verso inspirado”, descreve o produtor Hermínio Bello de Carvalho, em texto contido no encarte do LP.

Parcerias

Com Pixinguinha e João da Baiana, gravou o disco Gente da antiga, em 1968. Dois anos depois, lançou Clementina, cadê você?, no qual interpretou canções como Sei lá, Mangueira, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho.

Em 1973, lançou Marinheiro só, disco produzido por Caetano Veloso, com faixa homônima – uma adaptação do folclore popular feita pelo baiano. No mesmo ano, foi convidada por Milton Nascimento para gravar a música Os Escravos de Jó, composição de Milton e de Fernando Brant. Os dois homenagearam Clementina, ainda, na canção Raça, em 1975.

Ainda sobre as parcerias, lançou um disco com Carlos Cachaça (1976) e interpretou com Clara Nunes a música PCJ – Partido da Clementina de Jesus (“Não vadeia Clementina/ Fui feita pra vadiar”), composição de Candeia que integrou álbum da cantora mineira.

Em 1979, lançou o LP Clementina e convidados, do qual participaram Candeia, João Bosco, Roberto Ribeiro, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, entre outros. Nesse álbum, ela aparece, também, como compositora, ao lado de Catoni, na faixa Laçador.

Djalma Santos, Pixinguinha e Clementina de Jesus (Foto: Fundo Correio da Manhã/ Arquivo Nacional)

Ao lado de Tia Doca da Portela e de Geraldo Filme, em 1982, gravou o LP Canto dos escravos, no qual interpretaram cânticos de escravos de uma região de Minas Gerais – levantados pelo pesquisador Aires da Mata Machado Filho.

Homenagens no final da vida

Sem grande sucesso comercial, Clementina teve uma vida humilde, passou por problemas financeiros e chegou até a escrever uma carta ao ministro da Previdência da época, Jair Soares, pedindo aposentadoria como cantora.

“A nêga Clementina de Jesus já passou por muita coisa na vida. E hoje, para viver, beirando os 80 anos, necessita ainda se locomover por esse Brasil inteiro fazendo a única coisa que ainda pode: cantar. Mas a nêga véia está cansando, seu Ministro [...]”. O texto foi reproduzido no livro Quelé, a voz da cor, de Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz.

Em 1983, Clementina foi homenageada em um espetáculo no Theatro Municipal do Rio de Janeiro que contou com a participação de Paulinho da Viola, João Nogueira, Elizeth Cardoso, entre outros.

Nesse mesmo ano, foi uma das personalidades destacadas pela escola de samba Beija-Flor de Nilópolis no enredo A Grande Constelação das Estrelas Negras. Também foi lembrada pela Escola de Samba Lins Imperial, um ano antes, no enredo Clementina, uma rainha negra.

Albino, Beth Carvalho, Clementina e Cartola (Foto: Fundo Correio da Manhã/ Arquivo Nacional)

“Tem um ímã qualquer comigo, que todo mundo me adora. Mas eu não sei o que é, não sei explicar a vocês o que é”, disse, durante entrevista para o Vox Populi, da TV Cultura, em 1979.

Considerada a rainha do partido-alto, a cantora se apresentou até 1987, quando, depois de complicações decorrentes de um derrame, faleceu no dia 19 de julho. Sua voz eternizou canções que até hoje são entoadas em rodas de samba por todo o país.

“Com a morte de Clementina, perdemos uma grande figura humana, uma artista que representa o povo negro, ligada à história do nosso país. O canto dela era uma coisa popular e ela tinha uma comunicação rápida com qualquer plateia do Brasil e do mundo. Tudo o que ela nos transmitia foi resultado de uma aprendizagem oral de muitos anos e acho que ela poderia ter sido mais reconhecida do que foi”, disse Paulinho da Viola, em reportagem do Jornal do Brasil publicada no dia 20 de julho de 1987, um dia após a morte da cantora.


Fontes
Site da Fundação Cultural Palmares
Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira
Enciclopédia Itaú Cultural

 
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