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Astronomia africana e Ensino Fundamental
02 Janeiro 2023 | Por Márcia Pimentel
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Gravura de Rá, o deus egípcio do sol. Sua cabeça é representada por um falcão em preto e branco. Acima dela há um círculo na cor de tijolo, circundado por uma cobra naja. O corpo do deus tem aparência humanizada, com braceletes nos antebraços, pulsos e tornozelos. Em uma das mãos, Rá carrega uma chave em forma de cruz egípcia e, na outra, um cajado fino e comprido. O deus é representado com o peito nu, ornado com um colar largo e colorido, e usa uma saia e um cinto grosso, de onde pende um chicote.
Rá, o deus Sol dos antigos egípcios. Jeff Dahl, Wikicommons


Desde os anos iniciais do Ensino Fundamental, os corpos e os fenômenos celestes começam a ser apresentados aos estudantes. Isso inclui a compreensão do céu sob a ótica das diferentes culturas ao longo da história da humanidade, em especial as dos povos que compõem a matriz cultural brasileira.

Segundo o professor Alan Alves Brito, astrofísico do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “a narrativa cosmológica hegemônica é branca e europeizada”. Ele  acredita que é preciso começar a incluir, de uma perspectiva cultural, a visão dos negros e dos indígenas sobre os fenômenos celestes. 

Para Alan Brito, isso pode ser feito de diversas maneiras. O fundamental é o educador identificar os povos originários que formaram sua comunidade escolar com a perspectiva de incluí-los  no assunto: como os africanos e os indígenas compreendiam o sol, a lua, as estrelas e demais fenômenos e corpos celestes? 
 

Mitos da criação 

É difícil falar da astronomia indígena e da astronomia africana de forma monolítica, dada a grande quantidade de povos e de culturas existentes nas Américas e na África. Embora a observação do céu costumasse ser relacionada a eventos e ciclos da natureza, as explicações sobre tais fenômenos eram distintas. 

Bosquímano

Muitos mitos africanos relacionam a criação dos corpos celestes às crianças. Conforme artigo de Driele Pimenta Silva e Gustavo Iachel, da Universidade Estadual de Londrina, para os bosquímanos, grupo étnico que até hoje vive em áreas de Angola, Namíbia, África do Sul e Botswana, o sol era um homem “da raça antiga” que, ao levantar os braços, fazia brilhar uma luz forte em suas axilas.  De braços levantados, ficava até a hora de se recolher para descansar. Mas ele passou a dormir demais conforme foi envelhecendo, deixando seu povo com frio.  As crianças então o pegaram e o jogaram no céu. Lá, ele se tornou redondo e quente e ficou brilhante para sempre.

Da “raça antiga” também era a menina que criou a Via Láctea. Ela jogou no céu um punhado de cinzas de uma fogueira, formando um caminho brilhante para que, à noite, as pessoas pudessem se localizar e voltar para casa. Ela também jogou pedaços de raízes no céu. As mais velhas viraram estrelas vermelhas e as mais novas, estrelas brancas. 

Yourubá

Para vários povos africanos a criação está relacionada aos deuses. Conforme os iorubás, por exemplo, Orum (o céu) e tudo o que nele existe é obra do deus Olorum. Foi Obatalá (ou Oxalá), um dos filhos de Olorum, quem criou a terra firme. Para que esse novo lugar tivesse vida, Olorum deu a ele uma palmeira de dendê para ser plantada e dar origem às florestas. Coube a Obatalá a criação dos primeiros humanos, moldando-os a partir do barro. Para que as plantas e os humanos prosperassem, Olorum criou o sol e a chuva.  

Gravura de Nanã Buruku. A orixá usa roupa ritual: um vestido com saia farta e rodada, nas cores branca, azul, lilás e roxo. Também usa bracelete nos pulsos e dois cordões-guia cruzados. Na cabeça há um torso, de onde saem franjas que recobrem os olhos. Nanã ainda carrega um ibiri, uma espécie de bastão com a ponta recurvada.
A orixá Nanã Buruku, relacionada à criação do mundo entre os povos jejes. Davi Nascimento, Wikicommons


Jeje

Já entre os jejes, cujas sociedades eram matriarcais, a criação se relaciona com entidades femininas. Foi Nanã Buruku, com a ajuda das serpentes Aido Wedo e Dangbala, quem teria criado o mundo. Ela deu vida aos animais e às plantas e incumbiu os gêmeos Mawu-Lisa de criar os humanos. Como Mawu (o princípio feminino) não conseguia domar a intempestividade de Lisa (o princípio masculino), Nanã dicidiu separá-los. Deu a lua a Mawu, para que ela iluminasse a Terra, à noite, e o sol para Lisa, para iluminar o dia e para que ele enxergasse bem os erros humanos antes de castigá-los. 

Em algumas narrativas, é atribuída exclusivamente a Mawu todas as tarefas da criação. Nanã seria apenas a sacerdotisa de Mawu. 

Bacongo

Os bacongos são um grupo étnico banto da costa atlântica africana. Vivem desde o sul do Gabão até a atual República Democrática do Congo, e em algumas regiões da República Centro-Africana. Para eles, o responsável por toda a criação é Kalunga, que se autocriou a partir da força e da energia vital que existia no nada. Os ocidentais costumam identificá-lo com Deus (que também teria criado todas as coisas), porém é preciso entender que Kalunga não é um balizador da moral, mas sim a energia suprema, a força motriz da criação e da existência do universo. 

No livro Filosofias africanas: uma introdução, Nei Lopes explica que para os bacongos a Terra é um fútu, ou seja, um saco onde Kalunga colocou tudo o que era necessário à existência (alimentos, bebidas, ervas etc), amarrando-o com um nó bem apertado para guardar o segredo da vida.  É comum entre os bakongos que cada um tenha o seu própio fútu para guardar os seus segredos.  

Egípcio

Para os egípcios antigos, a deusa Nut era o céu e a mãe de todos os corpos celestes, a exemplo de Rá, o sol. Ao entardecer, ele era engolido por ela (daí o termo a “boca da noite”). Durante todo o período noturno, Rá viajava pelo corpo da mãe até voltar a ser parido de novo por ela (daí o termo o “nascer do sol”).


Calendário

Não há sociedade humana que não tenha observado e interpretado o céu e utilizado, na prática, o conhecimento oriundo disso. É o caso dos antigos egípcios, que relacionavam vários fenômenos celestes aos ciclos do Nilo. Quando a estrela Sírius, por exemplo, aparecia na linha do horizonte pouco antes de o sol nascer (o chamado nascer helíaco), era sinal de que as cheias do rio estavam próximas e que o período de calor e de plantio havia chegado.  

Segundo artigo do egiptólogo português Telo Ferreira Canhão, os egípcios organizaram um calendário que influenciou fortemente a reorganização do calendário romano, nos tempos de Júlio César. Os egípcios haviam dividido o ano em 365 dias e em 12 meses de 30 dias (em função das fases da lua). Os 12 meses eram responsáveis por 360 dias do calendário, mas a eles eram somados outros cinco dedicados aos deuses, para assim completar o ciclo solar e o intervalo de dias entre dois nascimentos helíacos de Sírius.

Gravura em papel. O teto da tumba de Senmuth tem formato retangular, é circundado por estrelas de cinco pontas e dividido, ao centro, por duas linhas que partem de um mesmo ponto de fuga. À esquerda do teto, há quatro círculos divididos por vinte e quatro linhas. À direita, oito. O teto também tem desenhos de várias figuras míticas: três ao centro e vinte abaixo dos círculos.  Há ainda hieróglifos que parecem nomear cada círculo e cada figura mítica.
Detalhe do teto astronômio do túmulo de Senemut, arquiteto egípcio da 18ª dinastia de farós. Metropolitan Museum, domínio público
 

O calendário egípcio chamou a atenção do imperador de Roma Júlio César: “O mais inteligente que jamais existiu na história da humanidade”, teria dito. Ordenou, assim, uma reforma no calendário romano, tendo chamado, em 46 a.C, o astrônomo Sosígenes de Alexandria para fazer os necessários estudos, adaptando o calendário egípcio à cultura e à mitologia romana. 

O novo calendário, batizado de “juliano”, foi instituído em 45 a.C., em todo o Império. No século XVI, o Papa Gregório XIII reuniu um grupo de especialistas para fazer novas correções. O calendário “gregoriano” é o que usamos hoje. 

Alan Alves Brito ainda lembra que outros povos europeus, como os gregos, também beberam (e muito) nas fontes do conhecimento astronômico dos egípcios (e babilônios). “Eles tinham vários estudos sobre os eclipses, catálogos sobre o movimento dos planetas...  Também é importante saber que os babilônios foram os primeiros povos a introduzir o método científico (matemático) na observação do mundo físico”, diz o professor da UFRGS. 


Outras organizações do tempo
 

Os povos da África são grandes observadores das estrelas e constelações. Não à toa, elaboraram outros calendários, a exemplo dos somali, dos bérberse, dos igbos, dos boranas... O calendário Igbo, por exemplo, utilizado até hoje pelos povos tradicionais da Nigéria, se baseia na observação do sol e da lua, mas é centrado nas atividades do mercado, atividade tão importantes para esta cultura.  

Não é por acaso que a semana do calendário igbo tem quatro dias, chamados  de “dias de mercado”. Conforme o Portal Efigenias, especializado em cultura negra, o mês igbo tem sete semanas (28 dias) e o ano, 13 meses, totalizando 364 dias, além de um a mais a cada dois anos. 

Já segundo artigo de Lawrence R. Doyle, do Departamento de Física e Astronomia da Universidade da Califórnia, os Borana (que vivem no sul da Etiópia e no Quênia, desde os tempos antigos), elaboraram um calendário lunar-estelar, baseados em observações astronômicas da lua em conjunto com sete estrelas (Triangulo, Pleiades, Aldebaran, Belletrix, Orion Central, Saiph e Sirius).  

Conforme o pesquisador norte-americano, o calendário borana tem 354 dias e 12 meses de 29/30 dias cada um e, em nenhum momento se baseia em observações solares. “É preciso entender que cada povo tem sua forma de se conectar com o céu. Um mesmo corpo celeste pode ganhar vários nomes e receber distintas interpretações”,  diz Alan Alves Brito, lembrando que as conexões entre o Céu e a Terra são amplas e diversas, podendo açambarcar relações transcendentais, culturais, econômicas, políticas, comerciais... 

 

Fotografia. Mulher negra de véu muçulmano preto e azul
Mulher etíope da etnia borana. Rod Waddington, Wikicommons
  

 

Saiba mais: 

Vídeos 

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