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Rua Uruguaiana: uma trajetória singular
SÉRIE
07 Dezembro 2017 | Por Márcia Pimentel
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Rua Uruguaiana. Foto Gaban, 2011. Wikimedia Commons

Com início no Largo da Carioca e término na Rua Acre, nas proximidades da Praça Mauá, a Uruguaiana é uma das principais vias comerciais do centro histórico do Rio de Janeiro, abrigando desde o Camelódromo até tradicional Confeitaria Cavé, que, inaugurada em 1860, ostenta o título de a mais antiga da cidade ainda em funcionamento. O comércio popular e a posição estratégica em relação ao transporte e a outros concorridos logradouros conferem à rua um grande fluxo diário de pedestres, característica diametralmente oposta à que tinha em seus primeiros 150 anos de existência, quando era o lugar mais deserto e perigoso da área urbana, que só as prostitutas, os errantes, desvalidos, escravos e mendicantes costumavam frequentar.

No século XVII, quando a cidade estava circunscrita entre os morros do Castelo, de São Bento, da Conceição e de Santo Antônio, a Uruguaiana era o limite entre o perímetro urbano e o campo, os fundos da urbe, cuja frente era voltada para o mar da Rua Direita (atual Primeiro de Março). Tinha o nome de Rua da Vala pelo fosso que nela foi construído para drenar os charcos e as lagoas próximas, além das enchentes que acometiam o Rio de Janeiro.


Da série Esse Lugar Tem História

Vala

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A Lagoa de Santo Antônio, atual Largo da Carioca, e a vala. Detalhe de gravura de Carlos Gustavo Nunes Pereira, Portal GEO, IPP. Uso amparado pela lei 9610/98

De acordo com o Instituto Pereira Passos (IPP), o primeiro trecho da vala surgiu no início do século XVII, quando Manoel de Brito, beneficiário de uma sesmaria no Morro da Conceição, mandou abrir uma canaleta para drenar o brejo e a lagoa que existiam nas proximidades da Prainha (Praça Mauá), com o objetivo de aumentar a área cultivável no sopé da colina. Não muito tempo depois, a vala começou a ser estendida pela administração da cidade, a fim de facilitar o escoamento das águas das enchentes que ocorriam com frequência.

Na outra ponta da cidade, os padres franciscanos, instalados no Morro de Santo Antônio desde o início do século XVII, faziam reclamações constantes em relação à quantidade de insetos que proliferavam na lagoa que existia onde hoje fica o Largo da Carioca. Finalmente, no início da década de 1640, aconteceu a drenagem de suas águas, por meio do alargamento e aprofundamento do valado que escoava em direção à Prainha. Mas logo se constatou que o serviço não era suficiente, de modo que, em 1646, foi colocado um duto – com vazão em direção à praia em frente ao Largo do Carmo (Praça Quinze) – em uma via perpendicular à vala, que, por causa disso, passou a se chamar Rua do Cano (atual Sete de Setembro).

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O Conde da Cunha, primeiro vice-rei do Brasil. Fiocruz, domínio público

Se, de um lado, o alargamento e o aprofundamento da vala minimizaram os problemas de encharcamento do solo, de outro, produziram novos contratempos, já que o fosso passou a ser utilizado como lugar de despejo de lixo e dejetos. O transtorno do mau cheiro e da imundice causado pelo fosso só foi resolvido na segunda metade do século XVIII, quando o Rio já havia virado capital da colônia e o vice-rei Conde da Cunha mandou cobri-lo com lajes de pedra. Segundo Brasil Gerson, em seu livro Ruas do Rio, o estopim que levou ao fechamento da vala teria sido o acidente ocorrido com o mais graduado auxiliar do vice-rei, que nela teria caído após uma noitada de “aventura galante” – uma provável piada produzida na época, já que ele, por seus modos ásperos e arbitrários, virou um dos personagens prediletos do anedotário popular setecentista.

Muro da discórdia

As invasões francesas de 1710 e 1711 colocaram na ordem do dia a questão da defesa da cidade. Por isso, a Coroa portuguesa enviou ao Rio o brigadeiro e engenheiro João Massé, com a missão de projetar obras de fortificação. Uma delas foi o muro ao redor do perímetro urbano, que começou a ser erguido a uma pequena distância da vala.

A questão é que a cidade passava por crescimento acelerado desde que o Cais de Brás de Pina (entre a Candelária e o Morro de São Bento) tornou-se o lugar onde o ouro das Minas Gerais deveria ser obrigatoriamente embarcado para Portugal (por isso o cais começou a ser chamado “dos Mineiros”). O aumento populacional produzia sobre a Câmara grande pressão pela concessão de novos “chãos urbanos”, como se dizia na época, e criava a necessidade de expansão da cidade para as terras além da Rua da Vala.

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Detalhe de planta da cidade do Rio de Janeiro, desenhada pelo brigadeiro e engenheiro João Massé, em 1711 ou 1712. O muro, projetado por ele mesmo, aparece assinalado em linha vermelha. Arquivo Ultramarino, domínio público

O muro, então, transformou-se em objeto de discórdia permanente entre os vereadores e o governo da capitania, que priorizava a defesa. A peleja, contudo, foi vencida pela Câmara. Com a vala coberta e o muro derrubado, a cidade pôde se alastrar em direção ao Campo de Santana.

Pretos x cabido

Em 1667, as confrarias de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, constituídas basicamente de negros, decidiram se unir. As imagens dos dois santos estavam abrigadas na Igreja de São Sebastião, no Morro do Castelo, que, em 1684, se transformou na sé da cidade. Não demorou muito para os cônegos da catedral (o cabido) entrarem em desavença com os fiéis da irmandade.

Os dois lados conviveram em pé de guerra até os primeiros anos do século XVIII, quando foi iniciada a construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos em um terreno doado na Rua da Vala.

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D. João e a corte portuguesa na entrada da Igreja do Rosário e de São Benedito, em 1808. Óleo sobre tela de Armando Martins Viana, Museu da Cidade. uso amparado pela lei 9610/98

A obra durou vários anos e, segundo informações do portal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1737, quando estava praticamente concluída, a sé da cidade – já muito deteriorada – foi transferida para lá a grande contragosto da irmandade, que só se livraria de vez do cabido em 1808, quando o príncipe regente D. João, em comum acordo com o bispo, transformou a Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Capela Real.

Mas foi para a Igreja do Rosário e de São Benedito, a sé até então, que a família real se dirigiu para rezar a missa em agradecimento ao êxito da viagem, desde Lisboa até o Rio de Janeiro. Também foi lá, no consistório da igreja, que o Senado da Câmara realizou diversas seções às vésperas da independência do Brasil, inclusive a que outorgou o título de Defensor Perpétuo do Brasil ao príncipe regente D. Pedro.

Em 1967, a igreja pegou fogo. Toda a sua decoração barroca e seus livros de registro foram perdidos no incêndio. Reinaugurada dois anos depois, contou com um novo equipamento cultural: o Museu do Negro.

Damas do Alcazar

A Rua da Vala foi beneficiária do novo movimento que se instaurou na cidade a partir da chegada da corte e da Abertura dos Portos, em 1808. O comércio da Ouvidor se irradiou para os arredores, principalmente a partir da década de 1830, com o início do Ciclo do Café, que injetou recursos que estimularam as atividades comerciais e muitas transformações na vida urbana, como o crescimento das camadas médias da população.

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Atriz do Alcazar Lyrique. Detalhe da capa da revista Ba-ta-clan de 29/6/1869. BN Digital, domínio público

Mas nenhuma oferta de novos serviços causou tanto frisson à Vala – e à cidade da época – quanto a abertura da casa de espetáculos Alcazar Lyrique que trouxe para a então capital brasileira a novidade do teatro de vaudeville, que tanto sucesso vinha fazendo em Paris com os musicais apimentados e ligeiros do compositor Offenbach.

Com suas atrizes-cortesãs em cena – as cocottes –, o Alcazar era aplaudido por uns e amaldiçoado por outros, a exemplo do escritor Joaquim Manuel de Macedo, que, em Memórias da Rua do Ouvidor, assim o descreve: “O teatro dos trocadilhos obscenos, dos cancãs e das exibições de mulheres seminuas (...) corrompeu os costumes e atiçou a imoralidade”. A opinião não era, contudo, corroborada por todos. A revista Ba-ta-clan mantinha, inclusive, uma coluna intitulada L’Alcazar en robe de chambre, dedicada às “atrizes da elite”, várias delas vindas da capital francesa.

Opiniões à parte, o fato é que a casa de espetáculos marcou a noite do Rio e logo fez escola, inclusive com seus bailes de carnaval. Vários teatros de “café-cantante” – como o vaudeville era chamado na época – foram abertos, especialmente na Praça Tiradentes e arredores, alguns anos depois da inauguração do Alcazar Lyrique, em 1860. Aliás, foi nessa mesma década que a Rua da Vala passou a se chamar Uruguaiana, em homenagem à retomada da cidade gaúcha durante a Guerra do Paraguai.

Alargamento

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Obras de alargamento da Rua Uruguaiana, na altura da Carioca. Foto Augusto Malta. In: Rio de Janeiro, 1900-1930, uma crônica fotográfica. Domínio público

Segundo a arquiteta Paula Silveira de Paoli, a mais importante rua comercial do Centro, na virada para o século XX, era a Uruguaiana. A via foi incluída nas reformas do então prefeito Pereira Passos (1902-1906) e teve sua largura ampliada de 6 metros para 17 metros, por meio da demolição de seu lado ímpar. A intervenção urbana foi acompanhada de um decreto que aumentou a largura dos lotes da face demolida, produzindo uma diferença de escala na testada dos imóveis, que pode ser verificada até os dias atuais.

Enquanto no lado par proliferaram sobrados estreitos, no ímpar foram construídos edifícios e lojas de fachada larga, como a Casa Sloper, loja de departamentos que marcou tanto o comércio da cidade, durante a segunda metade do século XX, e inspirou a letra da música Bijuterias de João Bosco: “Na idade em que estou / Aparecem os tiques, as manias / Transparentes / Feito bijuterias / Pelas vitrines / Da Sloper da alma”.

Galeria de Imagens
A Lagoa de Santo Antônio, atual Largo da Carioca, e a vala. Detalhe de gravura de Carlos Gustavo Nunes Pereira, Portal GEO, IPP. Uso amparado pela lei 9610/98
A entrada da esquadra de Duguay-Troin na Baía de Guanabata, na madrugada de 21/7/1711, durante forte tempestade. In: Recueil des combats de Duguay-Trouin, década de 1740. BN Digital, domínio público
Planta da cidade do Rio de Janeiro, desenhada pelo brigadeiro e engenheiro João Massé, em 1711 ou 1712. O muro, projetado por ele mesmo, aparece assinalado em linha vermelha. Arquivo Ultramarino, domínio público
D. João e a corte portuguesa na entrada da Igreja do Rosário e de São Benedito, em 1808. Óleo sobre tela de Armando Martins Viana, Museu da Cidade. uso amparado pela lei 9610/98
Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. Foto Augusto Malta, entre 1903 e 1935. BN Digital domínio público
O Conde da Cunha, primeiro vice-rei do Brasil, tampou a vala com lajes de pedra. Fiocruz, domínio público
   Atriz do Alcazar Lyrique. Capa da revista Ba-ta-clan de 29/6/1869. BN Digital, domínio público
Publicidade do espetáculo Monsier de Malboroug, em cartaz no Alcazar Lyrique. Revista Ba-ta-clan de 12/10/1867. BN Digital, domínio público
Obras de alargamento da Rua Uruguaiana, na altura da Carioca. Foto Augusto Malta. In: Rio de Janeiro, 1900-1930, uma crônica fotográfica. Domínio público
Com as obras de alargamento, implementadas por Pereira Passos, o lado ímpar da Uruguaiana ganhou prédios com fachadas mais largas que o lado par. Foto Augusto Malta, 1907. BN Digital, domínio público
O comércio da Rua Uruguaiana, altura da Ouvidor, década de 1920. BN Digital, domínio público
Foto Luiz Musso, década de 1910. Vues de Rio de Janeiro, domínio público
 
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