No ano em que comemorava seus 200 anos, o Museu Nacional não poderia ter destino pior. O incêndio de domingo (2) reduziu a pó grande parte da coleção de 20 milhões de itens nas áreas de Antropologia, Zoologia, Arqueologia e Geologia. As coleções de vertebrados, botânica e a grande biblioteca, com material de viajantes e obras raras, foram preservadas porque estavam instaladas em um prédio anexo.
“Foi uma hecatombe. O acervo etnológico perdeu materiais indígenas, africanos, da Oceania. Havia peças mais antigas que o próprio museu, herdadas dos imperadores D. Pedro I e II. Havia mais de 40 mil peças relativas aos povos indígenas do Brasil, o maior acervo sobre esse tema nas Américas. Eram memória, os elementos de cultura material que permitiam repensar culturas, formas de contato e mudanças culturais. Além do acervo, perdemos a biblioteca do programa de pós-graduação em Antropologia Social, com 30 mil volumes. A arqueologia também perdeu um acervo valioso – material dos Andes, do Egito, da Europa”, conta o antropólogo e professor titular da UFRJ João Pacheco de Oliveira.
Benilson Sancho, professor de História na E.M. Nerval de Gouveia (4ª CRE), em Ramos, disse que “todo ano levava os estudantes do 6º ano para ter contato direto com fontes relacionadas às civilizações antigas ocidentais”. Ele considera que é no contato com a materialidade que novos sentidos são construídos, quando se trata do ensino de História. “Múmias, ânforas gregas e, principalmente, o fóssil de Luzia nos permitiam democratizar a experiência de apropriação desse patrimônio pelos jovens de comunidades socialmente desfavorecidas. O ensino perde com o incêndio. A escola perde com essa tragédia terrível. Dos escombros fica o luto e o desejo de lutar por direito ao patrimônio, à memória e à história.”
Outra professora de História da Rede Pública Municipal de Ensino que utilizava o Museu Nacional para levar conhecimento aos seus alunos é Carolina Ferreira, da E.M. Cecília Meireles (5ª CRE), em Vila Cosmos: “A perda do acervo sob guarda do Museu Nacional é imensa. Chamo a atenção especialmente para o acervo da exposição Kumbukumbu: África, memória e patrimônio, inaugurada em 2014, que trazia uma diversidade de coleções referentes à história africana e dos afro-brasileiros, embasando ações educativas vinculadas à Lei nº 10.639/03. Destaco a coleção de armas dos povos hereros, dizimados no contexto colonial pelo imperialismo alemão; os presentes do rei do Daomé ao príncipe português D. João VI, no início do século XIX; e a coleção Polícia da Corte, formada por objetos que foram tomados pela polícia no contexto de perseguição às religiosidades afro-brasileiras ainda no final do século XIX. Tínhamos perto de nós um acervo sobre a África que dava conta da diversidade, criatividade, poder e resistência dos africanos e seus descendentes, mas que agora restará apenas na memória daqueles que puderam visitar a exposição”.
Desde 1946, o Museu Nacional está vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Originalmente, o prédio foi moradia da família real. D. Pedro II nasceu e viveu lá até ser banido com a proclamação da República. Sua deterioração é pública há quatro décadas, com problemas de infraestrutura diversos – goteiras, gambiarras elétricas, falta de uma brigada contra incêndios etc.
O professor João Pacheco de Oliveira tenta pensar no futuro do Museu. "É um desafio muito grande para a instituição se reconstruir. Os programas de pós-graduação contam com teses e grande parte do material guardados em pen drives e computadores pessoais. O aspecto mais duro é realmente o acervo. A equipe está disposta a seguir com a linha de descolonização dos materiais em parcerias com outros museus."