A influência positiva que a atenção, o afeto e os estímulos têm no desenvolvimento infantil é conhecida por pesquisadores e educadores já há algumas décadas. Durante a primeira infância (período entre o nascimento e os 6 anos), a exposição precoce e constante a esses fatores impacta diretamente o ritmo de ampliação de várias habilidades cognitivas da criança, e uma das formas mais efetivas de provê-los é por meio da linguagem falada.
A partir desse fato, um estudo realizado, em 2018, por pesquisadores de Harvard e do Massachusetts Institute of Technology (MIT) tentou descobrir mais detalhes sobre os efeitos da interação verbal no cérebro infantil. Além de revelar a região cerebral afetada, a pesquisa trouxe duas outras grandes novidades: mais importante do que falar para crianças é falar com elas; e os ganhos possibilitados pela interação verbal frequente não dependem do nível socioeconômico. Diante de estímulos semelhantes, crianças ricas e pobres se beneficiam da mesma forma.
“Há muitos estudos que mostram a importância das interações de ‘ação-e-reação’ para crianças de todas as idades. Sabendo da importância da linguagem desde cedo, nós procuramos entender melhor os mecanismos neurais envolvidos”, explica a líder do estudo, a norte-americana Rachel Romeo, em entrevista ao PORTAL MULTIRIO.
Os pesquisadores utilizaram uma tecnologia de gravação automatizada que, durante dois dias, registrou cada palavra dita ou ouvida por 36 crianças, entre 4 e 6 anos, de diferentes níveis socioeconômicos. Em seguida, contabilizaram, para cada uma, o número de palavras ditas por elas, o número de palavras ditas a elas e o número de conversas que tiveram com algum adulto.
Após a aplicação de testes padronizados de vocabulário, gramática e raciocínio verbal, foi possível constatar que as crianças com melhores resultados foram as que tiveram mais conversas com adultos. Esse mesmo grupo apresentou atividade mais intensa na área de Broca, região do cérebro ligada à fala e ao processamento da linguagem, enquanto ouvia histórias.
O estudo considerou como conversa as situações nas quais a fala efetivamente se alterna entre os participantes, proporcionando aos pequenos a oportunidade de praticar suas habilidades de comunicação, inclusive a capacidade de entender o que o adulto está tentando dizer e responder-lhe de maneira apropriada.
A Educação Infantil (EI) é essencial para o pleno desenvolvimento das crianças, e os profissionais da Rede Pública Municipal de Educação estão atentos às suas necessidades. “A nossa orientação é a da escuta sensível e promotora de novas possibilidades de experiências que originam aprendizagens. Precisamos estar disponíveis, de fato, para as crianças, acolhendo suas narrativas e dialogando com elas”, explica a professora Cristiane Amâncio, responsável pela Gerência de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação.
Mudança de hábito
Se o estudo de Harvard e MIT mostrou que o bom desempenho das crianças com mais interações verbais com adultos não tem relação com o nível socioeconômico ao qual pertencem, a verdade é que, por diversos motivos, o hábito de conversar com os filhos tende a ser mais comum em famílias de classes média e alta. Segundo Rachel Romeo, vários grupos de pesquisa, incluindo o dela, estão estudando como auxiliar famílias a ampliar a frequência de conversas com seus filhos. “Nossas descobertas iniciais indicam que pais e responsáveis são plenamente capazes de adquirir esse hábito. No entanto, pode ser difícil mantê-lo no longo prazo. Ainda estamos tentando encontrar a melhor maneira de apoiar os adultos dispostos a mudar.”
Outras ações relativamente simples, como uma rotina de sono bem regulada, também são comprovadamente benéficas para o desenvolvimento infantil. Para Romeo, é importante que governos e escolas disseminem essas informações. Contudo, ainda mais importante é providenciar apoio para ajudar as famílias a incorporá-las na rotina. “Muitas mães e pais fazem o melhor que podem com os recursos de que dispõem. É difícil conseguir conversar com os filhos ou colocá-los para dormir cedo quando você tem vários empregos, luta para colocar comida na mesa e apresenta estresse crônico. O conhecimento é poderoso, mas não é muito útil se não é possível implementá-lo de forma viável”, pondera a pesquisadora.
Parceria escola-família
Os educadores devem não só incentivar e estimular meninos e meninas, como também orientar as famílias. “Devemos compartilhar com os familiares a proposta pedagógica e o cotidiano da escola: as descobertas dos alunos, suas dúvidas e inquietações. Assim, aproximamos a comunidade escolar e propiciamos diálogos entre crianças e famílias, crianças e professores e entre as próprias crianças”, recomenda Cristiane Amâncio.
Segundo Rachel Romeo, seja no ambiente familiar ou escolar, o importante é que haja estimulação. “Certamente, os incentivos de educadores são muito importantes para o desenvolvimento cognitivo infantil. Mas eles são mais proveitosos quando se somam a estímulos anteriores, vindos do lar. É como construir uma casa: você precisa de uma base sólida para sustentar o restante. Por outro lado, isso não quer dizer que a mãe e o pai são os únicos responsáveis. Qualquer adulto convivendo com uma criança durante os primeiros anos de vida pode ter um grande impacto em seu desenvolvimento. De quem vem o estímulo é secundário. O essencial é que ele ocorra no momento adequado”.
O grupo de pesquisa de Romeo pretende, agora, estudar os efeitos de diferentes estratégias para incorporar mais conversas no dia a dia de crianças. Uma das possibilidades são programas de computador capazes de conversar. “Muitos estudos mostram que a interação humana é imprescindível para o desenvolvimento e, obviamente, isso é verdade. Somos seres sociais que aprendem por meio da comunicação interpessoal. No entanto, a tecnologia interativa está avançando rapidamente ao ponto de, às vezes, ser difícil distinguir se estamos falando com uma pessoa ou com uma máquina. Não penso que corremos o risco de substituir humanos por computadores no cuidado com crianças, muito menos de substituir os bons contadores de histórias. Mas o tempo vai dizer se estamos nos aproximando do momento no qual a tecnologia vai colaborar em novas e inesperadas maneiras para o aprendizado”, projeta a cientista.