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Touradas à carioca
11 Abril 2016 | Por Sandra Machado
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Raro registro fotográfico de redondel lotado no Rio de Janeiro (Fonte: esporterio.blogspot.com)

Um dado pouco discutido nas memórias do Rio de Janeiro pode provocar arrepios entre os simpatizantes da proteção aos animais. Do período colonial aos primeiros anos do século XX, vários dos locais mais conhecidos pelos cariocas na atualidade serviram de palco para a realização de touradas. Campo de Santana (antigo Campo de São Domingos e Campo da Aclamação), Cinelândia (chamada Largo da Mãe do Bispo e, depois, Campo da Ajuda), Largo da Lapa (Campo da Lapa do Desterro), Rua do Lavradio, Quinta da Boa Vista e até a Rua Visconde de Itaúna, no bairro do Jardim Botânico, são citados nas fontes históricas.

As “corridas de touros” eram realizadas nos moldes portugueses, que, diferentemente dos espanhóis, não exigiam o sacrifício do animal ao fim do espetáculo. Registros documentais indicam que essa forma de entretenimento já existia no século XVII porque, transferido para o Brasil como modelo de festa pública, fazia parte das festividades concebidas para mostrar lealdade à Coroa na Europa, em caso de bodas ou nascimentos ocorridos na família real, por exemplo. Cerimônias religiosas, fogos de artifício, desfile de carros alegóricos, representações de teatro e de dança mobilizavam o Rio de Janeiro durante dias seguidos, nas festas patrocinadas por governadores ou vice-reis, que muitas vezes contavam até com donativos da própria população.

Chifres, cascos e comoção social

De acordo com o pesquisador Victor Andrade de Melo, houve touradas promovidas de 31 de março a 8 de abril de 1641, em uma “Praça do Curro” construída na região entre o Morro do Castelo e a Lagoa do Boqueirão, para comemorar a aclamação de Dom João IV em Portugal. É interessante ler a descrição do pesquisador para os festejos pelo nascimento do Príncipe da Beira, Dom José, primogênito de Dona Maria I: “A Praça do Curro se tratava de uma grande instalação, de aproximadamente 73 X 55 metros (40 X 30 braçadas), com palanques e dois camarotes luxuosos e muito bem ornamentados. Os símbolos reais estavam espalhados pela arena, bem como exibidos nas pomposas roupas dos mais poderosos. Estima-se que, por dia, cerca de 10 mil pessoas compareceram ao evento, entre as quais as mais importantes personalidades da cidade. Para que se tenha uma ideia do tamanho da afluência de público, segundo Honorato (2008), em 1799, mais de 35 anos depois, portanto, o Rio de Janeiro possuía 43.736 habitantes”.

Ilustração da praça de touros na área onde se localiza hoje o Campo de Santana (Fonte: Blog da Biblioteca Nacional)

Na chegada da família real, em 1808, e no primeiro aniversário de Dona Leopoldina na cidade, dez anos mais tarde, quando a consorte de Dom Pedro I foi apresentada à sociedade , houve temporadas de corridas de touros muito bem-sucedidas. Mas nem sempre era assim, conforme registrado por dois viajantes em 1819, chamados Leithold e Rango, que deixaram por escrito suas impressões sobre as touradas comemorativas pelo nascimento da princesa Maria da Glória: “Um tourinho magro, cuja ira alguns figurantes paramentados procuravam em vão provocar com suas capas vermelhas, permanecia fleumático e, quando parecia, uma vez que outra, disposto a investir, logo pulavam eles assustados a barreira que os separava do público e eram recebidos com assobios e cascas de laranja”.

Período áureo no Segundo Império

Depois de proclamada a Independência, houve um longo intervalo na promoção de touradas no Rio de Janeiro. A Praça de Curro deixou de servir apenas a solenidades governamentais e ganhou um caráter comercial, sendo utilizada para exibições de acrobacia, ginástica e circos de cavalos. A lacuna, no entanto, não tinha a ver apenas com a transição do modelo, de estatal para a iniciativa privada, mas também com o excesso de entusiasmo do público carioca em termos de envolvimento. Nas décadas de 1840 e 1850, diversas vezes arenas foram destruídas por espectadores de alguma maneira descontentes com a exibição. Como agravante, era crescente o interesse de leigos em participar da chamada “prova dos curiosos”, quando um touro era colocado à disposição dos voluntários da plateia que tivessem coragem suficiente de enfrentá-lo.

A valorização da vida pública, consequência do processo de consolidação de uma burguesia urbana, aos poucos fez surgir empresários também dispostos a realizar os altos investimentos demandados pela tauromaquia – nome técnico da arte dos toureadores –, que atingiu o auge do sucesso entre os anos de 1870 e 1884, promovendo eventos aos sábados, domingos e num terceiro dia de semana, como parte da programação cultural da cidade. Os “capinhas”, assistentes conhecidos por usarem capas menores que as dos toureadores, voltaram a circular em maior número pelas ruas, enquanto os protagonistas do show, fossem touros ou homens, vinham preferencialmente do exterior.

A imprensa publicava com destaque qualquer notícia que se relacionasse ao assunto. Anúncios ressaltavam a facilidade de acesso por meio das linhas de bonde, enquanto informavam que os ingressos podiam ser comprados na arena ou no importante Hotel Ravot, situado na Rua do Ouvidor, no qual se hospedavam homens de negócios, especialmente cafeicultores. Victor Andrade de Melo destaca: “Pela primeira vez no país aparece a distinção entre arquibancadas no sol (2$000) e na sombra (3$000), além de camarotes, aumentando-se a divisão da plateia por renda”.

Muito olé no pacato bairro do Flamengo

Quem hoje passa pelo Flamengo jamais vai imaginar, mas é verdade: nenhum outro bairro do Rio teve arenas de touradas tão concorridas quanto ele. Nos anos 1870, existiu uma praça de touros no Caminho Novo de Botafogo (atual Rua Marquês de Abrantes), que, segundo os jornais de época, vivia lotada.

Anúncio de jornal que promovia tourada do Clube Tauromáquico (Fonte: diariodorio.com)

Em janeiro de 1877, os pretendentes a toureadores, que antes se contentavam apenas com a “prova dos curiosos”, se organizaram para criar o Clube Tauromáquico, com renda destinada a associações beneficentes, que iria se apresentar na mesma praça da Rua Marquês de Abrantes onde aconteciam as performances da companhia oficial de toureiros. Nos bastidores estava a nata da colônia lusitana no Rio: comerciantes, industriais e representantes de instituições como o Liceu Literário Português e o Gabinete Português de Leitura. Dois meses mais tarde, a primeira apresentação foi promovida em prol das vítimas de uma inundação em Lisboa e de uma instituição de caridade carioca. Descrita nos jornais como uma forma de exercício físico comparável à ginástica, a atividade ainda granjeava a simpatia popular por se prestar às ações filantrópicas. Naquele ano, o periódico O Mosquito chegou a estampar, na capa de uma edição, uma história em quadrinhos em que Bordallo Pinheiro fazia uma sátira política usando uma tourada como mote.

Diferentes do período de homenagens à família real, as touradas mais recentes jamais contaram com a presença de membros da realeza, apesar de reiterados convites. Circulavam boatos de que o imperador Dom Pedro II seria avesso àquela forma de lazer, argumento, aliás, muito utilizado pelos opositores da tauromaquia em campanhas combativas constantes. Coincidentemente ou não, em 1878 o Ministério do Império indeferiu o pedido de aprovação dos estatutos do Clube Tauromáquico.

Também entre a elite intelectual carioca, cresciam as críticas ao caráter primitivo do costume. Assim como Artur Azevedo e José do Patrocínio, o escritor Machado de Assis se colocava publicamente como antagonista. “E querem saber por que detesto as touradas? Pensam que é por causa do homem? Ixe! É por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da humanidade”, publicou em uma crônica, ciente de que, no embate de opiniões, se delineavam encaminhamentos do próprio desenvolvimento da capital.

Touros abolicionistas

Com o desenrolar das controvérsias, foi dado ao chefe de polícia da corte a prerrogativa de autorizar, ou não, qualquer divertimento que pudesse interferir na tranquilidade pública. De novo as corridas de touros foram suspensas até 1883, ano de inauguração de uma nova praça no Caminho Velho de Botafogo (atual Rua Senador Vergueiro). Ali, a média de público chegava a cerca de mil pagantes, em meio aos quais se destacavam senhoras da alta sociedade.

Em foto de 1905, é possível ver, ao fundo, a construção da Praça de Touros, na esquina da Rua Ipiranga com Rua das Laranjeiras (Fonte: diariodorio.com)

O português Francisco Pontes, apelidado de “o Rei dos Toureiros”, chegou a doar uma boa quantia à Confederação Abolicionista, que reunia todas as agremiações do Brasil, além de combinar uma corrida de touros com renda revertida para a causa da libertação dos escravos. Não faltaram observadores atentos às contradições da sociedade, como revela uma crônica da Gazeta da Tarde: “Compreende-se que elas se proíbam em países onde há proteção para os animais; mas, entre nós, onde não há essa proteção, nem para os homens, como sucede com os escravos, seria ridícula tal ostentação hipócrita de humanidade”.

É também a imprensa da época que fornece pistas sobre o status das corridas de touros. Em 1888, o jornal O País noticiava touradas na coluna “Diversões”, sob a rubrica “Sport”, o que claramente dá a dimensão do seu significado junto à população. Somente na virada para o século XX, uma praça de touros foi construída, em alvenaria, na Rua Ipiranga, no bairro de Laranjeiras. Por ironia, a tentativa de definir que espaço tinha esse entretenimento no Rio, por meio de uma construção permanente – até então, o chamado redondel tinha sempre estrutura de madeira – chegou tarde, já que a prática foi extinta com a promulgação do decreto no 1.173, de 12 de maio de 1908, do prefeito Francisco Marcelino de Souza Aguiar. Quanto à Praça de Touros das Laranjeiras, sucumbiu à especulação imobiliária, dando lugar a um prédio residencial nos anos 1930, quando o lazer carioca já contava com outras formas de diversão, entre as quais o pacífico rádio.

Fontes:

MELO, Victor Andrade de Melo. As touradas nas festividades reais do Rio de Janeiro colonial. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 19, n. 40, p. 365-392, jul/dez 2013.

_______ Uma diversão adequada? As touradas no Rio de Janeiro do século XIX (1870-1884). In: História. São Paulo: v.32, n.2, p.163-188, jul/dez 2013.

 
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