Assim como as línguas vivas, submetidas a transformações constantes pelo uso dos falantes, também as cidades são organismos de informação em permanente mudança. No Rio de Janeiro, nenhuma outra região concentra conjuntos arquitetônicos mais representativos do que o centro histórico, onde as marcas indeléveis das três estruturas políticas pelas quais passou o país – colonial, imperial e republicana – estão ao alcance de uma boa caminhada. Embora a ocupação do Rio remonte ao século XVI, foi apenas em 1984, a partir da implantação do Corredor Cultural, que se estruturou uma política municipal completa de proteção aos ambientes antigos. Até então, o tombamento se dava apenas para monumentos isolados, mas nunca sobre áreas compostas por diversos prédios, seu entorno e, sobretudo, que levasse em conta a afetividade ligada à memória local.
Por falta de uma cultura de preservação, durante muito tempo – e em especial nas décadas de 1960 e 1970 – demolições apagaram os últimos vestígios de épocas passadas, enquanto abriam espaço para novos templos do desenvolvimentismo, caracterizados pelos arranha-céus do mercado financeiro e pelas amplas avenidas destinadas aos veículos automotivos. Neste início do século XXI, no entanto, a compreensão do significado de metrópole tem sido revista e o carioca se depara com a perspectiva de uma nova repaginação, condizente com paradigmas mais humanizados. Quando a pessoa se torna o centro do processo, o transporte procura ser mais racional, a estética constitui um valor a ser preservado e desperta um olhar voltado não apenas na direção para onde vamos, mas também na de onde viemos.
Muy Leal Cidade de São Sebastião
Um dos mais antigos registros sobre o Rio de Janeiro, atribuído a Tomé de Sousa, recomendava o investimento específico, por parte de Portugal, na localidade que o primeiro governador-geral do Brasil conheceu, maravilhado: “Parece-me que vossa alteza deve mandar fazer ali uma povoação honrada e boa”, escreveu a d. João III. Esse talvez tenha sido o prenúncio do que ainda estava por vir, a despeito dos muitos altos e baixos pelos quais a cidade viria a passar.
Em 1567, quando os invasores franceses foram expulsos, a primitiva vila instalada entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar se transferiu para o alto do Morro do Castelo, de acordo com o padrão português em suas colônias mundo afora: protegida por paliçadas de madeira, com uma praça central onde se localizava a igreja e a escola dos jesuítas, mais os prédios da Casa de Câmara e da Cadeia e os Armazéns da Fazenda Real. O crescimento se deu descendo a Ladeira da Misericórdia, de onde se originou a Rua Direita, conhecida na atualidade como Primeiro de Março.
A partir da extensão para o trecho que equivale à atual Praça Quinze é que as ruas começaram a ter um traçado regular. Por essa época, o Rio tinha recebido até mesmo uma alcunha do reino português: Muy Leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Segundo o livro Encantos do Rio, publicado por Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo de Freitas Pinheiro, três ordens religiosas – a dos beneditinos, a dos carmelitas e a dos franciscanos – se seguiram à dos pioneiros jesuítas, atraídas pelo crescimento da vila, que movimentava o porto graças à exploração do pau-brasil, aos engenhos de cana-de-açúcar e à caça às baleias. Marcos remanescentes do período são as igrejas, conventos e conjuntos religiosos preservados, em contraponto às residências do período colonial, das quais não sobrou nenhum resquício: o Mosteiro de São Bento, na Praça Mauá; o Convento do Carmo, na Praça Quinze; e o de Santo Antônio, no Largo da Carioca.
Posição de destaque no cenário nacional
Somente quando os riscos de novas invasões cederam, no fim do século XVI, é que o povoamento começou a se espalhar em direção à planície, onde se apresentava outro tipo de inimigo: uma grande extensão de terra alagadiça, constituída de pântanos, manguezais e lagoas, que impunha toda sorte de limites, diante dos parcos recursos de então. Com a descoberta das jazidas de ouro em Minas Gerais, no crepúsculo seiscentista, e com o escoamento do produto da mineração pelo porto carioca, em 1763 a capital da colônia foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.
Como consequência da elevação de status e da riqueza em circulação, a austeridade das construções deu lugar a uma arquitetura de maior ostentação. São exemplos dessa fase, em que finas camadas de ouro recobriam os entalhes de madeira nos altares, a Igreja de São Francisco, no Largo de São Francisco, e o Outeiro da Glória, único exemplar inteiramente barroco preservado na cidade. Ao apagar das luzes do século XVIII, o Rio de Janeiro já havia se consolidado como metrópole.
A dificuldade do terreno pantanoso só viria a ser sanada com a vinda da família real, em 1808. Data desse período o primeiro sistema de drenagem, projetado para facilitar a instalação de mais de 15 mil pessoas que chegavam acompanhando d. João VI. A súbita elevação da taxa demográfica fez com que a malha urbana precisasse se expandir em direção ao norte (Catumbi e São Cristóvão) e ao sul (Laranjeiras e Botafogo). Outra consequência direta dizia respeito aos costumes: pouco a pouco, a vida cultural passou a admitir passeios pelas ruas, inclusive de mulheres devidamente acompanhadas pelos homens da família, o que intensificou a importância da convivência em sociedade.
Período de decadência
Assim que d. Pedro I proclamou a independência do Brasil, em 1822, surgiram novas necessidades. Foi o período das construções no estilo neoclássico, trazido pela Missão Francesa, que perdurou por todo o século XIX, não apenas nas obras monumentais, mas, também, no casario. Pé direito elevado e escadas externas, em mármore ou granito, eram típicos das moradias e também dos palacetes dos barões do café. O patrimônio inclui os palácios do Itamaraty e do Catete, os prédios do Automóvel Clube e da Santa Casa de Misericórdia e a Igreja da Candelária, todos construídos durante o Segundo Reinado. Por essa época, a burguesia comercial abandonou a parte antiga da cidade em direção aos novos bairros residenciais, ao sul (Copacabana, Ipanema e Leblon) e ao norte (Tijuca, Vila Isabel e Méier). A libertação da mão de obra escrava, somada aos imigrantes que chegavam sonhando enriquecer, transformou as ruas do Centro em hospedagem de segunda classe. Proliferavam, então, os cortiços e as casas de cômodos decadentes. Havia problemas de circulação e de insalubridade.
No fim do século XIX, a tendência das construções no Rio se voltou para a Europa. Uma mescla de estilos resultou no ecletismo, predominante no período da Primeira República. Preciosidades dessa fase são o Real Gabinete Português de Leitura e o castelinho da Ilha Fiscal, construídos no estilo neogótico. Por essa época, os navios estrangeiros não aportavam no cais, temerosos das epidemias, concentradas especialmente na área central da cidade, que lentamente se tornou uma região de submoradia.
Configuração moderna
Com o advento da proclamação da República, em 1889, e as reformas do prefeito Pereira Passos, entre 1903 e 1906, a renovação urbana modificou profundamente a paisagem carioca, numa tentativa de fazê-la ostentar ares mais cosmopolitas. O médico sanitarista Oswaldo Cruz coordenou campanhas de combate à febre amarela e à varíola, que, apesar de seu excelente resultado, desencadearam a Revolta da Vacina, com uma série de confrontos que durou dias nas ruas da capital.
Melhorar as condições de higiene passava, também, pela arquitetura: vielas e becos deram lugar a avenidas largas, e edifícios comerciais foram erguidos para atender ao centro financeiro. Datam desse período a Avenida Central, atual Rio Branco, a Avenida Beira Mar e a Avenida Rui Barbosa. Com inspiração nos bulevares parisienses, algumas ruas foram alargadas: Avenida Passos, Rua Uruguaiana e Rua da Carioca, entre outras. Foi aberta, também, a Avenida Rodrigues Alves, a partir da inauguração do novo porto ao longo de um cais de quase quatro quilômetros de extensão.
Na Belle Époque brasileira, o ponto alto do dia era frequentar os cafés chiques na Rua do Ouvidor. Em nome da modernização, grande parte da arquitetura colonial foi destruída para dar lugar a prédios, no modelo eclético, do imponente conjunto arquitetônico da Cinelândia (Praça Marechal Floriano), em que se destacam o Museu Nacional de Belas Artes, o Theatro Municipal e a Biblioteca Nacional. A partir da década de 1910, o ecletismo conviveu com dois novos estilos: art nouveau, que marca a Confeitaria Colombo e o Restaurante Albamar; e o clássico, do qual o Palácio Tiradentes é um exemplo. Na década de 1920, houve o desmonte do Morro do Castelo e, com ele, desapareceram os últimos vestígios do núcleo original da cidade.
Patrimônio recente
A realização da Exposição Internacional do Centenário da Independência, em 1922, inaugurou a era industrial. O antigo prédio do Museu da Imagem e do Som, na Praça Quinze, é remanescente daquele grande evento. Já o primeiro arranha-céu da cidade, com 20 andares, foi o Edifício A Noite (1929), que permanece firme na Praça Mauá. A partir de 1925, o art déco entrou em destaque. Um bom exemplo do estilo é a Casa Cavé, na Rua Uruguaiana.
Durante o Estado Novo, foram abertas vias da magnitude da Avenida Presidente Vargas, de mais de quatro quilômetros de extensão e 80 metros de largura. A sua construção implicou a demolição de cerca de 500 imóveis, incluindo cinco igrejas, além da destruição completa da Praça Onze.
Em meados do século XX, foram arrasados o Morro de Santo Antônio e grande parte da Lapa, para permitir a abertura da Avenida Chile. Na Praça Quinze, o Mercado Central deu lugar à Avenida Perimetral. É da mesma época a construção do Palácio Gustavo Capanema, projeto da arquitetura modernista desenvolvido por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy. Na sequência, o Aterro do Flamengo se firmava como a maior obra de engenharia em áreas alagadas do município. O parque tornou-se a mais significativa contribuição ao lazer do carioca, entre as diversas ações por ocasião do 400º aniversário da cidade. Às vésperas de completar 450 anos, o Rio de Janeiro atravessa outras tantas reconfigurações, a serem, um dia, igualmente lembradas pelas gerações futuras.
Referência bibliográfica:
PINHEIRO, Eliane Canedo de Freitas; PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas. Encantos do Rio. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.
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Elas estão por toda parte, muitas há gerações, e podem ser escolhidas para tombamento tanto por seu valor botânico quanto pela relevância como marco paisagístico de uma época.
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